AS MENINAS WILMA E NILZA - De Seattle, nos Estados Unidos, onde vive com o filho Caetê, Nilza Lessa escreveu sobre suas lembranças da irmã Wilma, sobre a infância, sobre o Brasil daqueles tempos. Num texto franco e sincero ela abriu seu coração e contou um pouco da sua história de vida.
Leia a seguir.
Leia a seguir.
Wilma Lessa: sua vida, seus demônios, suas
conquistas, suas paixões, seu "coração de ouro", seu legado.
"Ai meus tachos" dizia a
pequena Wilma, falando dos cachos dourados de seus cabelos, quando ventava. O
cuidado com a aparência já era bem notável aos 2 anos de vida de nossa pequena heroína.
Muitas vezes o que se passava com Wilma, eu confundia, e não sabia se houvera
se passado comigo ou com ela. Definitivamente essa história dos cachos havia se
passado com ela!
Ela cantava também, imitando o
comercial: "Blim blom, Blim blom, o meu Toddy vou tomar...," aos três
anos já sabia as vogais e aos quatro já lia. Uma vez quando nos estávamos a caminho
da Estação Luz, em São Paulo para pegarmos o expresso Sao Paulo-Rio, para
visitar vovó Olívia, em Caçapava, a perdemos! Mas mamãe apesar de seu desespero
e de inevitavelmente pensar que Wilma havia sido raptada, podia pensar
claro, era uma mulher inteligente:
"Venha Nilza, vamos voltar pelo mesmo caminho até encontrar a Wilma"
E foi que depois de andarmos um bom pedaço vimos ao redor de uma banca de jornais,
junto a alheios, Wilma lendo as revistas e as manchetes to dia! Eis a grande
leitora que iria se tornar na poeta, escritora, oradora defensora dos direitos
humanos e intercessora das mulheres vítimas de violência em Recife.
Desde sempre foi a Wilma Lessa cheia
de personalidade, além de outros invejáveis atributos que mais adiante falaremos.
Tinha o raciocínio tão rápido que
muitas vezes acreditei ser retardada, pois a medida que crescíamos eu tinha
mais e mais dificuldade em me por ao nível mental de Wilma. Seu raciocínio
rápido, seu senso de observação, sua intuição. Tudo me parecia muito além da
minha compreensão, tudo estava muito acima e adiante de mim, apesar de que eu
era um ano e meio mais velha que ela.
Apesar de nos amarmos muito tínhamos um vazio entre nossas habilidades
intelectuais, que com o passar do tempo foi nos provocando um distanciamento. É
claro que competíamos e eu sempre saía perdendo. Wilma desde menina e através
da adolescência vivia rodeada de intelectuais com os quais seu único interesse
era filosofar, trocar ideias, expor seus ideais, pessoas de ambos os sexos e eu
tinha muito ciúme de toda a atenção que ela recebia: pois eu ja estava
designada a permanecer em ser sua
sombra. Wilma adorava competir comigo, me chamava de "beldade" se
achava menos bonita, mas sempre ganhava, porque já mostrava sua inteligência
intelectual. Ainda na adolescência líamos Proust, Nietzsche, Marx, "O
pequeno Principe" de Antoine Exupéry (único dentre os escritores que Wilma
lia, que fazia sentido para mim, dado meu nivel intelectual), Ariano Suassuna, Roberto
Freire, Clarice Lispector, entre inúmeros escritores. Tenho certeza de que o
escritor Waldir Leite poderá dar seu depoimento com muito mais detalhes nesta área,
pois foi um dos melhores amigos de Wilma e a conhecia melhor que ninguém.
Ouvíamos incessantemente The Beatles,
Bach, MPB. Wilma freqüentava em SP a Academia de Capoeira Capitães de Areia. Ela
adorava Capoeira.
Visionaria desde cedo, nós saímos da
casa de meus pais quando Wilma tinha 16 anos e meio e eu 18, pois com dezoito poderíamos
alugar nosso próprio apartamento. Isso aconteceu por iniciativa de Wilma, pois estávamos
cansadas de lidar com os “caracteres" de mamãe, pois ela sofria de varias manifestações
de doenças mentais e não sabendo o que fazer com o desafio que éramos, principalmente
Wilma, nos tratava com muita violência física e mental. Entre as frases mais
fortes que tivemos que engolir foram para Wilma "Gata seca", (pois
ela sempre foi magra) e "Você não merece um nego pelado"! Esta frase
foi dirigida a mim (porem pode ter sido a Wilma, porque eu não sabia distinguir
muito bem as nossas experiências: nunca sabia bem se determinado fato se passou
com ela ou comigo). Quando Wilma tinha uns 14 anos, uma das duas foi levada ao
medico para verificar se era virgem. E foi isso o que me levou a concordar com
Wilma que já estava na hora de a gente sair mesmo para o mundo. Pois mamãe,
apesar de ter nos ensinado muita coisa boa, e de ter feito tudo o que pôde para
nos dar um teto, comida e roupa, era racista supremacista. Aliás, o racismo
institucionalizado é uma praga no Brasil e no mundo, incrustada nas vísceras do
povo.
Estávamos mais do que prontas a deixar aquele pesadelo para trás,
apesar de termos carregado nossos demônios uma vida inteira. Fiz terapia
cognitiva, psicanálise por 20 anos e nunca devo deixar de tomar meus
medicamentos. Uma vez me lembro, mamae
bateu tanto na Wilma com o fio do ferro de passar, que ela sangrava todinha,
pois tinha uma condição de pele muito delicada. Então, ela botou Wilma numa
banheira com água e sal. Wilma gritava de dor, esta cena eu nunca consegui esquecer,
dói ate neste momento...
Uma noite, quando ainda estávamos na
casa de meus pais, Wilma me encontrou toda ensangüentada, numa masmorra de lençóis,
paredes e corpo cobertos de sangue, desmaiada, tinha tentado suicidar-me.
Imagino o choque daquela imagem de sua irmã querida, que Wilma teve que levar
com ela tantos anos. Ela salvou minha vida naquela noite triste.
Já papai era um homem lindo. Tanto
Wilma quanto Noemi, nossa irmã caçula, que era como se fosse nossa boneca viva,
linda, adorávamos nosso pai, Papai tocava trompete, ouvia sambas, MPB, raiz,
moda de viola, valsa vienenses e sempre tocava para nós. "Meninas, vamos
brincar de rodas", eles nos chamava para ouvir um disco cor-de-rosa, me
lembro bem. Gostava de se trajar bem, fazia seus próprios perfumes em casa,
adorava mexer com aromas. Era fascinado por outras línguas e culturas. Acima de
tudo papai era fascinado por Wilma e tinha muito respeito por seus pensamentos.
Ele nos respeitava muito. Quando saíamos para a balada, pela janela e camuflávamos
nossas camas, papai sabia e nos prometia
não dizer nada a Dona Cida. E sempre manteve sua palavra.
Certa vez, chegou do trabalho com
flores a nos oferecer, a nós, suas filhas. Para mamae não: "nao posso
come-las", dizia. Dócil, seu
Julinho, como era conhecido, também fazia os nossos móveis. Wilma os desenhava
e ele os fazia.
Vivemos durante a era de ditadura
militar e muita opressão. Wilma foi presa como manifestante. Foi quando Lamarca
foi preso e dado como desaparecido. Ai devia ter ela 18 anos e logo partiu e
deixou São Paulo para ingressar sua vida em Recife, o que a transformou na memorável
mulher guerreira que foi, dedicando sua vida a escrever, escrever, escrever e
atuar, atuar atuar em defesa das minorias. O resto entrou para a historia do Brasil!
(Nilza Lessa)
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