sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018







BIOGRAFIA - Wilma Lessa nasceu em São Paulo, no dia 9 de junho de 1952. Os pais, Júlio Felipe Lessa e Aparecida da Silva Lessa, a dona Cida, nasceram em Caçapava, no interior de São Paulo. Por coincidência Wilma Lessa fazia aniversário no mesmo dia que sua mãe. Parece que 9 de junho é um dia de aniversário de mulheres de personalidade forte. Também nasceram num dia 9 de junho a novelista e pacifista austríaca Bertha von Suttner, a atriz israelense Natalie Portman e a escritora modernista brasileira Patrícia Galvão, a Pagu. 

Desde menina Wilma demonstrou ser uma pessoa inteligente e uma personalidade independente. Apaixonada por livros, lia tudo o que podia. A literatura sempre foi uma de suas paixões. Gostava dos escritores latino-americanos. Um de seus livros favoritos era Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo. Adorava ler Clarice Lispector, Manuel Puig Raimundo Carrero e Garcia Márquez. Gostava de ouvir Chico Buarque, Maria Bethânia, Astor Piazzolla, a trilha sonora do filme Borsalino, Belchior, Ednardo e Ornella Vanoni. Na juventude, no final dos anos de 1960 e início de 1970, frequentou assiduamente a vida boêmia de São Paulo. Era o auge do governo militar, mas havia uma efervescência cultural muito grande na cidade. Frequentava lugares badalados daqueles tempos na capital paulista como o Eduardo´s, o Ferros´s Bar e os botequins descolados da Rua Major Diogo. Nessa época teve um romance com um japonês chamado Toshi. A paixão foi grande e eles se casaram. Mas o casamento não durou muito, já que ela era uma jovem muito livre e independente. Na seqüência houve a separação, mas ambos continuaram amigos. Por conta do governo militar e dos movimentos de esquerda que tentavam derrubar o regime, havia muita tensão naquela época. Pessoas eram presas, outras sumiam sem deixar rastros. O clima foi se tor-nando cada vez mais tenso. Foi então que Wilma Lessa decidiu passar um tempo fora de São Paulo. Junto com uma amiga, Maria Lúcia Hatanaka, filha de japoneses, decidiram conhecer o Brasil viajando de carona. Saíram de São Paulo e foram parando em diversos lugares: Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, Sergipe. Pegaram muita carona em caminhões que rodavam pelas estradas do Brasil. Conheciam os lugares, as pessoas. Faziam artesanatos para ganhar algum dinheiro. Era bem o estilo dos jovens do início dos anos de 1970.

A viagem serviu para fazê-la relaxar do estresse de São Paulo, devido as tensões políticas da época, e também para conhecer um pouco do país que ela tanto amava. A viagem a encantava por descobrir a beleza do país, as várias culturas e o espírito solidário do povo brasileiro. Num dado momento da viagem sem destino, como no filme de Peter Fonda e Dennis Hopper, Wilma Lessa e sua amiga Maria Lúcia chegaram a Recife. E desde o momento em que chegou à capital de Pernambuco ela sentiu algo diferente no ar. As ruas, as pessoas, os rios, a arquitetura, a paisagem, a culinária, o sotaque: tudo a deixava encantada. Sentia-se à vontade naquele lugar. Sentia-se em casa. Resolveu ficar uns dias a mais. Então surgiu uma oportunidade de emprego, conheceu pessoas, fez novas amizades. Foi ficando, foi ficando e acabou vivendo o resto de sua vida em Recife. O seu estilo de vida livre e irreverente encantava muito as pessoas. Mas, ao mesmo tempo, provocavam conflitos. Pernambuco é um estado particularmente machista e Wilma sempre foi feminista e não admitia que a mulher fosse submissa aos homens. Então, ao decidir viver naquela cidade, por ter se apaixonado perdidamente pelo lugar e pelas pessoas, ela também decidiu que faria o que pudesse para mudar aquele comportamento machista que se mostrava tão claro naquela sociedade. E foi a partir desse amor pela cidade e desse conflito com o machismo pernambucano que surgiu o mito Wilma Lessa.




AS MENINAS WILMA E NILZA - De Seattle, nos Estados Unidos, onde vive com o filho Caetê, Nilza Lessa escreveu sobre suas lembranças da irmã Wilma, sobre a infância, sobre o Brasil daqueles tempos. Num texto franco e sincero ela abriu seu coração e contou um pouco da sua história de vida. 

Leia a seguir. 

Wilma Lessa: sua vida, seus demônios, suas conquistas, suas paixões, seu "coração de ouro", seu legado.
"Ai meus tachos" dizia a pequena Wilma, falando dos cachos dourados de seus cabelos, quando ventava. O cuidado com a aparência já era bem notável aos 2 anos de vida de nossa pequena heroína. Muitas vezes o que se passava com Wilma, eu confundia, e não sabia se houvera se passado comigo ou com ela. Definitivamente essa história dos cachos havia se passado com ela!
Ela cantava também, imitando o comercial: "Blim blom, Blim blom, o meu Toddy vou tomar...," aos três anos já sabia as vogais e aos quatro já lia. Uma vez quando nos estávamos a caminho da Estação Luz, em São Paulo para pegarmos o expresso Sao Paulo-Rio, para visitar vovó Olívia, em Caçapava, a perdemos! Mas mamãe apesar de seu desespero e de inevitavelmente pensar que Wilma havia sido raptada, podia pensar claro,  era uma mulher inteligente: "Venha Nilza, vamos voltar pelo mesmo caminho até encontrar a Wilma" E foi que depois de andarmos um bom pedaço vimos ao redor de uma banca de jornais, junto a alheios, Wilma lendo as revistas e as manchetes to dia! Eis a grande leitora que iria se tornar na poeta, escritora, oradora defensora dos direitos humanos e intercessora das mulheres vítimas de violência em Recife.
Desde sempre foi a Wilma Lessa cheia de personalidade, além de outros invejáveis atributos que mais adiante falaremos.
Tinha o raciocínio tão rápido que muitas vezes acreditei ser retardada, pois a medida que crescíamos eu tinha mais e mais dificuldade em me por ao nível mental de Wilma. Seu raciocínio rápido, seu senso de observação, sua intuição. Tudo me parecia muito além da minha compreensão, tudo estava muito acima e adiante de mim, apesar de que eu era um ano e meio mais velha que ela.  Apesar de nos amarmos muito tínhamos um vazio entre nossas habilidades intelectuais, que com o passar do tempo foi nos provocando um distanciamento. É claro que competíamos e eu sempre saía perdendo. Wilma desde menina e através da adolescência vivia rodeada de intelectuais com os quais seu único interesse era filosofar, trocar ideias, expor seus ideais, pessoas de ambos os sexos e eu tinha muito ciúme de toda a atenção que ela recebia: pois eu ja estava designada  a permanecer em ser sua sombra. Wilma adorava competir comigo, me chamava de "beldade" se achava menos bonita, mas sempre ganhava, porque já mostrava sua inteligência intelectual. Ainda na adolescência líamos Proust, Nietzsche, Marx, "O pequeno Principe" de Antoine Exupéry (único dentre os escritores que Wilma lia, que fazia sentido para mim, dado meu nivel intelectual), Ariano Suassuna, Roberto Freire, Clarice Lispector, entre inúmeros escritores. Tenho certeza de que o escritor Waldir Leite poderá dar seu depoimento com muito mais detalhes nesta área, pois foi um dos melhores amigos de Wilma e a conhecia melhor que ninguém.
Ouvíamos incessantemente The Beatles, Bach, MPB. Wilma freqüentava em SP a Academia de Capoeira Capitães de Areia. Ela adorava Capoeira.
Visionaria desde cedo, nós saímos da casa de meus pais quando Wilma tinha 16 anos e meio e eu 18, pois com dezoito poderíamos alugar nosso próprio apartamento. Isso aconteceu por iniciativa de Wilma, pois estávamos cansadas de lidar com os “caracteres" de mamãe, pois ela sofria de varias manifestações de doenças mentais e não sabendo o que fazer com o desafio que éramos, principalmente Wilma, nos tratava com muita violência física e mental. Entre as frases mais fortes que tivemos que engolir foram para Wilma "Gata seca", (pois ela sempre foi magra) e "Você não merece um nego pelado"! Esta frase foi dirigida a mim (porem pode ter sido a Wilma, porque eu não sabia distinguir muito bem as nossas experiências: nunca sabia bem se determinado fato se passou com ela ou comigo). Quando Wilma tinha uns 14 anos, uma das duas foi levada ao medico para verificar se era virgem. E foi isso o que me levou a concordar com Wilma que já estava na hora de a gente sair mesmo para o mundo. Pois mamãe, apesar de ter nos ensinado muita coisa boa, e de ter feito tudo o que pôde para nos dar um teto, comida e roupa, era racista supremacista. Aliás, o racismo institucionalizado é uma praga no Brasil e no mundo, incrustada nas vísceras do povo.
Estávamos mais do que  prontas a deixar aquele pesadelo para trás, apesar de termos carregado nossos demônios uma vida inteira. Fiz terapia cognitiva, psicanálise por 20 anos e nunca devo deixar de tomar meus medicamentos.  Uma vez me lembro, mamae bateu tanto na Wilma com o fio do ferro de passar, que ela sangrava todinha, pois tinha uma condição de pele muito delicada. Então, ela botou Wilma numa banheira com água e sal. Wilma gritava de dor, esta cena eu nunca consegui esquecer, dói ate neste momento...
Uma noite, quando ainda estávamos na casa de meus pais, Wilma me encontrou toda ensangüentada, numa masmorra de lençóis, paredes e corpo cobertos de sangue, desmaiada, tinha tentado suicidar-me. Imagino o choque daquela imagem de sua irmã querida, que Wilma teve que levar com ela tantos anos. Ela salvou minha vida naquela noite triste.
Já papai era um homem lindo. Tanto Wilma quanto Noemi, nossa irmã caçula, que era como se fosse nossa boneca viva, linda, adorávamos nosso pai, Papai tocava trompete, ouvia sambas, MPB, raiz, moda de viola, valsa vienenses e sempre tocava para nós. "Meninas, vamos brincar de rodas", eles nos chamava para ouvir um disco cor-de-rosa, me lembro bem. Gostava de se trajar bem, fazia seus próprios perfumes em casa, adorava mexer com aromas. Era fascinado por outras línguas e culturas. Acima de tudo papai era fascinado por Wilma e tinha muito respeito por seus pensamentos. Ele nos respeitava muito. Quando saíamos para a balada, pela janela e camuflávamos nossas camas,  papai sabia e nos prometia não dizer nada a Dona Cida. E sempre manteve sua palavra.
Certa vez, chegou do trabalho com flores a nos oferecer, a nós, suas filhas. Para mamae não: "nao posso come-las", dizia.  Dócil, seu Julinho, como era conhecido, também fazia os nossos móveis. Wilma os desenhava e ele os fazia.
Vivemos durante a era de ditadura militar e muita opressão. Wilma foi presa como manifestante. Foi quando Lamarca foi preso e dado como desaparecido. Ai devia ter ela 18 anos e logo partiu e deixou São Paulo para ingressar sua vida em Recife, o que a transformou na memorável mulher guerreira que foi, dedicando sua vida a escrever, escrever, escrever e atuar, atuar atuar em defesa das minorias. O resto entrou para a historia do Brasil!
(Nilza Lessa)